Por Julia Luchesi, Gerente de Operações e Relacionamento com Cooperativas da TriCiclos Brasil
(Publicado por Bluevision/ Brasken)
“Meu sonho é nunca parar de sonhar”. Essa foi a resposta da Guiomar, liderança da Cooperativa de Catadores(as) Sempre Verde, ao ser indagada sobre os seus sonhos. Fui tocada de imediato. Estávamos filmando um dia na vida dela, uma iniciativa que tinha a intenção de dar voz e mostrar o rosto de pessoas por trás do lixo. Guiomar é um exemplo entre milhares de pessoas que sobrevivem da catação de materiais recicláveis, uma profissão que foi reconhecida no Brasil em 2005. Esse texto aborda alguns destes momentos que vivi junto aos(às) catadores(as), ou seja, um pouco da minha experiência e da minha visão sobre o tema.
Em 2014, cerca de 15 milhões de pessoas (ONU Brasil, 2014) se declararam catadores(as) de materiais recicláveis. Destes, 26,6% estão na América Latina trabalhando em condições insalubres, dentro de lixões e outros lugares semelhantes. Nesse cenário global, o Brasil tem uma participação significativa, com 387.910 pessoas em atuação, sendo 41,6% concentradas na região sudeste. Além disto, o percentual dos que estão formalizados em cooperativas ou associações é baixíssimo, não chega nem a 1%.
Organizados em cooperativas ou trabalhando de maneira independente, os(as) catadores(as) fazem a conexão entre o consumidor e a indústria recicladora. Realizam a coleta e a classificação das embalagens descartadas pelos consumidores por tipo de material, garantindo que uma parcela diversificada de resíduo seja recuperada.
Apesar de serem de extrema relevância para o mercado de reciclagem – estima-se que 90% dos materiais que reciclados no país passam pelas mãos deles – essas pessoas ainda enfrentam barreiras para ser aceitas socialmente e incluídas nos sistemas de coleta seletiva dos municípios em que estão.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS 12.305\10) foi um marco positivo neste sentido. Principal documento direcionador das estratégias de ação para gestão dos resíduos em âmbito nacional, ela é inovadora e inclui a dimensão social. Sugestiona aos municípios a contratação das cooperativas para operação dos sistemas de coleta seletiva e reforça o papel de responsabilidade social das empresas em relação a este setor. Iniciativas como o Programa “Dê as Mãos para o Futuro”, de autoria da Braskem, fazem a diferença para levar infraestrutura e conhecimento às cooperativas, contribuindo para a evolução destas organizações.
Por outro lado, há ainda uma trajetória longa a ser percorrida para que esse setor chegue ao patamar necessário, ou seja, receba a merecida importância por ser um elo fundamental na cadeia de reciclagem. A função de catador(a) surge de maneira informal na vida de uma pessoa, sempre como alternativa para quem não consegue se inserir no mercado formal. Por isso, é comum encontrar muitos em situação de rua ou imigrantes sem perspectiva de trabalhar, ávidos por conseguir algum espaço para sobreviver nos centros urbanos. A maioria aprendeu a atividade nas ruas, de maneira vivencial, estimulados a coletar as embalagens que sabiam ter demanda no mercado, ou seja, com potencial de venda.É um assunto complexo, porque falar do reconhecimento desta categoria deveria sempre vir acompanhado por reflexão e entendimento da profunda desigualdade social presente desde o princípio no Brasil, estabelecida já nas primeiras relações entre colonizadores e força de trabalho escravocrata (negra e indígena), uma lógica central pela qual o país se constitui.
A primeira vez que entrei em contato com o tema, em 2008, não tinha consciência nenhuma dessas nuances, difíceis de serem percebidas por alguém em posição privilegiada como a minha (mulher branca, classe média alta e universitária). Mal enxergava o catador(a), sabia que ele(ela) existia, já os(as) tinha visto puxando carroça, mas era só um detalhe na paisagem das cidades, que constrói muros muitas vezes abissais e que faz com que o outro sequer seja notado.
Na época, já tinha sido tocada pela causa social e mergulhei de cabeça, mesmo sem muito conhecimento, quando tive a oportunidade de trabalhar lado a lado com catadores(as) dentro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), organização política que representa este segmento. Essa experiência me deu uma perspectiva real dos desafios diários enfrentados por eles, difíceis de serem contornados. Mas no meio desta trajetória, pude testemunhar muitas histórias de solidariedade mútua, o princípio vital para a sobrevivência desses trabalhadores. Desenvolvi uma relação de muita admiração e também conflitante, ao perceber que naquele ambiente a máxima de Paulo Freire também era vital pra manter certas dinâmicas de relação acontecendo: “o oprimido quer virar opressor”.
Entrei no MNCR como educadora do Programa CATAFORTE – Fortalecimento do Associativismo e Cooperativismo dos Catadores de Materiais Recicláveis, com o desafio de trabalhar princípios inerentes a esse tipo de organização, muitas vezes não reconhecido pelos(as) próprios(as) catadores(as). São eles: adesão livre e voluntária, gestão democrática, participação econômica, autonomia e interdependência, educação, formação e informação, intercooperação e interesse pela comunidade. Entendi que essa foi a maior iniciativa de injeção de recursos neste setor no país, para organização dos grupos com base na economia solidária, na primeira fase e nas outras duas restantes, com incremento em logística e assessoria técnica para estruturação das redes de comercialização, com previsão de investimentos na ordem de 200 milhões de reais.
Lembro até hoje das primeiras vezes em que fui a uma cooperativa, junto com a Guiomar, dar uma formação pelo CATAFORTE para um grupo de catadores(as). Neste contexto, o MNCR desenvolveu uma metodologia de trabalho “de catador pra catador”, onde a figura do(a) catador(a) é valorizada, pois ele(ela) se torna detentor(a) da experiência e serve como canal para compartilhar os saberes encontrados, sempre acompanhado de um apoio técnico.
Nesse caso, eu era o apoio técnico da Guiomar, liderança da Sempre Verde. Fomos à RECIFRAN, que na verdade é um serviço de apoio ligado à igreja e a trabalhadores deste segmento, muitos deles moradores de albergues e usuários de drogas. Tive uma falha de comunicação com um dos catadores que, me entendendo mal, me agrediu verbalmente (provavelmente estava sob efeito de alguma substância, segundo outros participantes. Foi um susto. Descrevo esse caso para demonstrar como as diferentes facetas deste tipo de segmento. Por isso é tão vital levar em conta uma perspectiva social e psicológica em todo plano que pretender a formalização do setor, incluindo a prestação de serviços das cooperativas nos municípios e nos programas de logística reversa das empresas.
Lembro agora a história da Dona Selma, mulher forte e destacadamente bondosa, catadora de materiais recicláveis. Antes de fazer parte da Cooperativa Nova Esperança, ela morou no Nordeste, era casada e estava longe de trabalhar com reciclagem. Teve um conflito com o marido e saiu fugida da sua antiga casa. Veio para capital paulista com uma mala de mão e sem nenhuma perspectiva de trabalho. Morou um tempo na rua e lembro dela contar que já tinha sido chefe do tráfico no centro da cidade. Difícil de imaginar. A chave da mudança, pra além da igreja, foi se descobrir catadora de materiais recicláveis.
Falo em descoberta porque presenciei com diversos(as) catadores(as) o orgulho de ser profissionais da catação ao reconhecer seu próprio trabalho. Claro, isso serve para aqueles que conseguem obter condições mínimas para atuar, além de espaço para pensar sobre a jornada vivida. Para vários deles o caminho é pesado, assim como para a sociedade o lixo é um tema de distanciamento. O(A) catador(a) se sente menosprezado(a) e não há muito tempo disponível entre conseguir algumas embalagens e vendê-las para obter o jantar.
A estratégia para a melhoria nas condições e o acesso a mais oportunidades dentro do setor foi incentivando a união entre os catadores autônomos e uma organização para a constituição de cooperativas. É uma lógica de empresa que se insere no 3º setor, em que todos os cooperados são sócios com poder de decisão, em uma perspectiva de geração de benefícios a todos. A prefeitura de São Paulo foi a primeira a estimular isso em 1989, ano que marca a fundação da primeira cooperativa de catadores de materiais recicláveis, a COOPAMARE (Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis).
Por operar numa lógica similar à de empresa, através da cooperativa é possível realizar a comercialização de materiais recicláveis para indústria recicladora, emitindo uma nota fiscal. Hábito administrativo tão comum no mundo empresarial, mas distante entre catadores(as) que muitas vezes sequer possuem título de eleitor, comprovante residencial, e por aí vai. Outro aspecto positivo de se trabalhar de maneira colaborativa é o alcance na obtenção de volume e da qualidade necessária para produção dos fardos, conforme exigência dos recicladores. Isso tudo além dos outros benefícios advindos da formalização, como: acesso a créditos no banco, ter uma conta jurídica, estabelecer contratos e ter uma estrutura de trabalho (galpão, maquinários e veículos), para citar alguns exemplos.
Outro detalhe que merece destaque é que a informalidade não se restringe apenas a catadores(as). Os famosos ferros velhos ou sucateiros operam nessa mesma lógica: compram a um valor abaixo do valor de mercado os resíduos coletados pelos(as) catadores(as) e, por sua vez, comercializam com o próximo elo da cadeia.
A saída encontrada pelas cooperativas para obter quantidade e qualidade e pular o intermediário foi se estruturar em rede (foco da terceira fase do Programa Cataforte). Legalmente, há uma categoria para isto: as cooperativas de terceiro grau. Ocorre quando no mínimo 3 cooperativas constituem uma nova empresa, para, em última instância, trabalhar de maneira compartilhada, comercializando conjuntamente um volume maior de embalagens, já que atuam de maneira pulverizada. A Rede Cata Vida, que abrange cooperativas do interior de São Paulo, é um caso bem-sucedido desta lógica. Essa organização possui um galpão exclusivo para estocar os materiais que serão comercializados pela rede, vindos das cooperativas associadas ou ainda de algum serviço de coleta prestado pela própria rede. Além do galpão, possuem uma área para limpeza do óleo de cozinha, o que agrega valor para comercialização do produto final. E, ainda, um sistema para lavagem e extrusão de embalagens plásticas.
Exemplo similar é o da Cooperativa Mãos Dadas, localizada no Rio Grande do Sul. Através do beneficiamento do plástico, conseguiram chegar num patamar de estabilidade de valores de retirada por mês (em cooperativa não se diz salário) acima de R$ 2.000,00 reais por cooperado. É uma situação diferenciada no país, já que o preço dos pellets(resultado deste processo) é muito superior ao da comercialização de um fardo de plástico comum. A estrutura, bem como a lógica para operar a limpeza e a extrusão do plástico, foi obtida também com o apoio da Braskem.
De maneira geral, é um caminho que as cooperativas e redes almejam alcançar. Somado a este patamar, há o desafio das organizações conseguirem receber pela prestação de serviços de coleta e segregação das embalagens dos parceiros que possuem. Só com a venda dos recicláveis já é sabido que não é possível obter a receita necessária para pagar os custos fixos e variáveis que possuem sem ‘precarizar’ o trabalho. Além disto, a própria lógica do mercado já opera dessa maneira. Se as concessionárias privadas são pagas por fazer o mesmo serviço, por que deveria ser diferente com as cooperativas?
Algumas delas já conseguiram esse êxito, mas há ainda muito trabalho pela frente. Trago eles comigo, junto com todas as histórias. Agora, na TriCiclos, eles se somam aos desafios de também trabalhar com os outros elos da cadeia de resíduos, para desenvolver soluções personalizadas de economia circular tendo o olhar da inclusão social como diferencial.
As cooperativas de catadores são os nossos principais parceiros na operação dos Pontos Limpos, modelo de coleta e triagem de materiais recicláveis de nossa autoria, que busca a interação com o consumidor para a reflexão sobre hábitos de consumo e descarte. Em parceria com o varejo, recebemos os materiais recicláveis da população e garantimos a correta separação, agregando valor e mantendo a qualidade das embalagens, que depois são destinadas para as cooperativas parceiras.
Somos também parceiros em projetos de análise de reciclabilidade das embalagens. O Índice de Reciclabilidade (IR) é uma ferramenta desenvolvida pela TriCiclos voltada para a indústria, que permite ter um olhar completo da estratégia de desenho de uma embalagem. A análise é feita sobre 3 principais fatores: material, design e eficiência, considerando a perspectiva de cooperativas, recicladores e transformadores em relação à embalagem analisada.
Essas são apenas algumas das soluções que oferecemos. Há outras. As conexões continuam. Algumas delas com o Cristiano, liderança da Recifavela. Cris, Josi e Lilian, moradores da favela Vila Prudente (SP), começaram ainda jovens a trabalhar como catadores(as), quando armazenavam o resíduo coletado debaixo de um viaduto próximo. Foram incentivados a se formalizar e, com apoio e muita luta, conseguiram constituir a cooperativa. Hoje, são uma organização referência, com mais de 40 sócios e uma produção mensal média de 150 toneladas. Conveniados com a prefeitura de São Paulo, recebem parte dos recicláveis coletados pelas concessionárias privadas. São os únicos que eu já ouvi falar, com tanta ênfase, sobre diversidade para o público LGBT, acessibilidade e muitos os temas fundamentais. Estão na vanguarda de muitas outras organizações, além de dominarem, de maneira impecável, toda a lógica industrial de produção necessária em uma cooperativa.
Fico por aqui com a história do Cris, da Guiomar e de tantas outras pessoas que fazem valer a pena todo o esforço e não me deixam esquecer do poder das relações humanas para a transformação que nossa sociedade precisa (e merece)!